domingo, 3 de março de 2013

'ANJOS & DEMÔNIOS' – A Experiência de Anna Sharp no Caminho de Santiago.

INTROITO: Alguns comentários referentes à busca espiritual e experiências de Anna Sharp, descritas em seu livro [‘A Magia do Caminho Real’]:

“... a caminhada espiritual não é feita de insegurança e temores, e sim da coragem que cada um precisa ter para seguir ao encontro de Deus”... (Paulo Coelho).
 - “O livro de Anna Sharp me fez ter uma nova visão do cotidiano, pois aprendi nele que a magia não está numa “iniciação” ao alcance de poucos, mas na vivência profunda da vida comum”. (Rose Muraro).
Quanto a mim, não só me identifiquei-me com o relato de Anna Sharp, como apreciei a linguagem despojada e divertida com que ela descreve suas aventuras e agruras no Caminho de Santiago, e acredito que o mesmo ocorrerá com você. Mas, sem dúvida percorrer mais de 700 quilômetros a pé nessa peregrinação, não é para qualquer pessoa. O aprendizado e a oportunidade de crescimento interior, porém que decorre de experiências interiores, tem sempre um valor inestimável... Por isso, é reeditado aqui; leia-o até o fim!
 Luz, Amor e Paz! (Campos de Raphael)
'Anjos e Demônios' - Relato de Anna Sharp.
(Extraído da obra 'A Magia do Caminho Real')
“Por não estar acostumada aos hábitos espanhóis, caminhei durante uma eternidade de sete dias, sem encontrar ninguém. Acordava cedo, entre cinco e seis horas, e já partia, seguindo o mapa do caminho que atravessava bosques, montes e vales, passando por povoados e poucas cidades grandes. Passei a mais horrível das solidões durante esta primeira semana”...
O medo terrível do desconhecido, atravessando florestas e subindo montanhas, seguindo trilhas que por vezes se perdiam dentro do mato, buscando as setas amarelas supostamente indicadoras do caminho, mas muitas vezes invisíveis, escondidas pela vegetação ou apagadas pelo tempo; passando por pueblos que pareciam fantasmagóricos com suas igrejas por vezes suntuosas, e casas medievais, portas e janelas sempre fechadas…
Não encontrava ninguém com quem conversar ou pelo menos para me fazer sentir viva e construir, nem que fosse por um momento, um laço de cumplicidade. Em alguns momentos pensava ter morrido, sem perceber, e vagando por mundos desconhecidos; em outros, vitima de algum encantamento, me tornava invisível; a cada momento passavam em minha mente mil fantasias de todas as ordens.
Apenas uma vez, em Puente La Reina, vi três mochilas num refúgio; encantada, resolvi não sair dali até seus donos chegarem para, então, fazer algum contato. Não aguentei o cansaço e adormeci; quando acordei, mais tarde, já tinham sumido. Sempre que chegava a algum povoado ou cidade, buscava, correndo, algum bar para comer ou me abastecer de comida. Os rostos estranhos me olhavam como se eu não existisse; tentava às vezes um sorriso como aproximação, mas sempre inutilmente.
Havia combinado, com Paulo, ligar para certo número de telefone, de três em três dias, e dar a minha localização; quando isso acontecia, meu único contato com o mundo mostrava-se lacônico ou inteiramente indiferente aos meus esforços e queixas. Passava por momentos de carência avassaladora, quase enlouquecendo dentro daquela solidão total; a perda dos referenciais, a cada passo, me atirava mais e mais profundamente no desconhecido dentro e fora de mim...
À medida que avançava, a constatação de minha total incapacidade de realizar a tarefa se tornava mais óbvia, me vendo aprisionada num beco sem saída entre o Caminho e o fracasso, o orgulho e a vaidade feridos perante os que admiravam a imagem nada real de supermulher que eu projetava. Dentro de mim havia a certeza de que desta vez não haveria atalhos, nem ninguém para me dar “cola”. Minhas máscaras, assim como as lágrimas, foram caindo ao longo do Caminho, povoado apenas pela solidão…
Os rituais da Tradição, os salmos desconhecidos, através dos quais tinha que respeitosamente me dirigir a Deus, foram me distanciando Dele, até então amigo íntimo e companheiro de todas as horas; aquele “Altíssimo” dos salmos era um desconhecido para mim...
O Universo, simbolizado pela imagem de Cristo, com quem discutia, agradecia e pedia, parecia-me agora bem longe, perdido num céu alto e distante, onde minha voz não era mais ouvida, por mais que eu berrasse e clamasse em direção ao Infinito. Ao vazio da paisagem árida que atravessava se unia agora o meu vazio interno...
Uma tarde, caminhando debaixo de um sol implacável, caí exausta sob o peso da mochila… Grossas lágrimas de desespero rolavam pelo meu rosto ardido e queimado pelo sol. Aquele vazio, a insegurança, o cansaço e o medo chegaram a níveis insuportáveis. Com uma semana apenas de caminhada, a impressão era de que já se havia passado anos desde que eu deixara o Brasil.
Soluçava alto como uma criança desamparada, amaldiçoando aquele “Senhor” que não me ouvia. Minhas forças haviam chegado ao final. Uma raiva incontrolável tomou conta de mim. Abri a mochila e aos arrancos tirei de dentro dela todos os objetos dos rituais atirando-os fora, pisando, quebrando e rasgando os salmos, enquanto gritava e blasfemava com violência. Perdi totalmente o controle, lançando-me no chão duro cheio de pedras e pequenos espinhos, sem nada sentir, berrando e xingando numa catarse nunca vivida antes…
Durante muito tempo fiquei ali deitada na terra quente, chorando e pedindo ajuda, um sinal, um milagre, sei lá… Nada… Nada, nenhum sinal de vida sequer, nem uma formiga para me indicar algo… Lentamente me dei conta do ridículo da situação, e procurei me acalmar e raciocinar:
- Tenho que sair daqui - falei ameaçadoramente, enquanto assoava o nariz com a mão… Vou chegar ao primeiro povoado, tomar um ônibus para Madri e enfrentar o fracasso. Levantando e arrumando a mochila nos ombros machucados, assimilei a imensa lição que estava recebendo, ou melhor, havia procurado...

Tenho que arrumar uma desculpa convincente para explicar a minha desistência, pensei: “Como vou encarar Billy, as crianças, meus alunos que tanto apostaram em mim?” Afinal, não importa. É bom que vejam o lado positivo da fraqueza e que se conscientizem de que têm uma mulher, mãe e mestra que, embora aventureira, é frágil e humana como todos. Enquanto me consolava com essas idéias, fazia planos de umas férias em Santander com minha amiga antes de voltar ao Brasil.
Decidi me livrar de um pouco do peso, já que ia voltar naquele mesmo dia, e tirei da mochila vários objetos, material de farmácia para curativos das famosas bolhas nos pés dos peregrinos (não tive nenhuma!), cremes, uma muda extra de roupa, deixando apenas uma para alguma emergência, ficando somente com o mínimo necessário.
O Paulo [Coelho], então, é um grande mentiroso! Me apavorou com as bolhas, me fez trazer agulha para costurá-las, que horror, como se eu fosse ter coragem para tanto; o papo furado de anjos e demônios… O que será que ele pretendia comigo, sabendo que na volta poderia desmascará-lo? Que teatro ridículo, pensei revoltada. Um guiazinho de merda é o que ele é. Esse mestre nem deve existir, deve ser uma técnica de marketing para vender livros…

Quem sabe não seria melhor combinar com Marli de ficar em Madri ou em Santander durante o resto do mês e deixá-los pensando que estou fazendo o Caminho? Enfim, a vida é minha e não devo explicações a ninguém…
Essa me pareceu uma idéia brilhante, que resolveria todos os meus problemas! Sim, claro que não preciso contar a ninguém. A lição é só minha e não preciso me humilhar publicamente, pensei, sentando novamente no chão para articular melhor sobre como concretizar esse projeto.
Faço a Marli jurar que nunca contará a ninguém, ficará um segredo e uma cumplicidade apenas entre nós duas, planejei, sorrindo de satisfação, me lembrando de nossa amizade. Será que ela continua a mesma? Uma suspeita sobre a sua confiabilidade passou por minha cabeça, afinal, há muitos anos não convivíamos, e talvez…
Olhei os montes áridos e cheios de pedras vermelhas que me cercavam; o sol brilhava inclemente no azul do céu… Até onde minha vista podia alcançar, nem um arbusto, nem um verde, nem sombra de vida, nada se mexia no céu sem nuvens…
- Que terra maldita essa aqui. Morreu e não sabe - ironizei com raiva. - Talvez seja melhor ficar os dias que me faltam numa simpática pensãozinha de um povoado qualquer e até aproveitar para escrever um livro…
É, estou precisando de umas férias e creio que esta é a melhor opção; o ser humano já me mostrou suficientemente suas fraquezas para eu saber que a confiança irrestrita não existe e, na verdade, se um dia esse segredo vazasse, eu ficaria completamente desmoralizada. Definitivamente, não posso ficar nas mãos dela. Vou para uma pensão e fico sozinha, é mais seguro.
Estudei o mapa e vi que faltavam 700 quilômetros até Santiago; a próxima cidade se chamava Fromista, onde pretendia chegar e ficar incógnita uns quinze dias. Em volta de mim, espalhados no chão, os salmos rasgados, a colcha estraçalhada que deixava de herança para o próximo idiota que passasse por ali...
Tenho setecentos quilômetros de vaidade e orgulho, pensei, me examinando honestamente. Que horror, tantos anos trabalhando internamente para me livrar dessas características e ai estavam elas, intactas.
- Setecentos quilômetros… Me senti presa, dentro de uma armadilha criada por mim mesma. O desejo era de voltar para casa tranquilamente, mas a vaidade e o orgulho não permitiam… Chorei rendida. Fui vencida… ninguém precisa saber, mas EU sei que fui vencida, não só pelo Caminho, mas principalmente pela vaidade que não me permite fazer o que quero: voltar para casa...
 De repente me lembrei de Paulo [Coelho], de sua conversa ridícula sobre encontros com demônios e anjos pelo Caminho… Olhei receosa a minha volta sentindo uma tênue presença, talvez criada pela minha imaginação.
- É verdade – murmurei para mim mesma. – Aqui está o meu demônio… e o nome dele é VAIDADE. Constatando a minha impotência, olhei mais uma vez tristemente para o mapa. Se eu desistir, ninguém vai saber, mas “eu” nunca mais vou poder me admirar… perderei o respeito que consegui sentir por mim durante todos esses anos.
Que fazer, meu Deus? Não aguento mais viver esse pesadelo e também não me permito desistir… Durante alguns minutos fiquei ali incapaz de tomar uma decisão. Finalmente, chorando de impotência, vi que só me restava uma alternativa: seguir…
- Vou chegar! Nem que morra pelo caminho, eu vou continuar por causa dessa merda de vaidade imensa que me aprisiona. Desisto! Sou impotente perante mim mesma… nada do que fiz adiantou! Levantei dolorida e decidida a ir de uma vez, enquanto examinava o corpo, arranhado pelos espinhos pequeninos da vegetação rala e rasteira; me arrumei o melhor que pude e levantei a mochila, ligeiramente mais leve.

Ao colocar o chapéu de abas largas, observei um passarinho que dava voltas no ar... Olhei extasiada para o primeiro sinal de vida que via em muitas horas. Subitamente, aproximou-se e pousou na mochila vermelha já em meus ombros...

Parei de respirar, estarrecida. Fiquei imóvel durante o que me pareceu uma eternidade. Muito lentamente, fui virando a cabeça para não assustá-lo, enquanto o ouvia cantar; a cada segundo que passava, uma certeza louca penetrava em meu coração: é o sinal… é o Universo me respondendo e falando comigo, é meu Amigo que finalmente me ouviu!…
Durante hora e meia andei acompanhada pelo passarinho, que ora estava pousado em mim, ora se afastava para um pequeno vôo, voltando alegremente em seguida. Tudo à minha volta havia mudado. O dia estava lindo! A natureza, antes gasta e árida, me aparecia agora uma velha senhora cheia de sabedoria e vida, com muitas histórias para contar, tentando me transmitir seus segredos seculares…
A brisa suave trazia de longe o doce perfume das ervas e o silêncio me apaziguava, enquanto eu, cuidadosamente, agora desviava o pé quando encontrava qualquer inseto, observando-os com respeito e percebendo-os como mais uma das infinitas formas da manifestação do Divino. 0 planeta emanava sacralidade. Me senti plena integrada ao Todo… parte incontestável do Todo!
Subi o morro íngreme sem nenhum cansaço e, sem perceber, cheguei ao alto, onde via ao longe um rebanho de carneiros brancos e a figura solitária de um pastor. O que foi mesmo que Paulo me havia falado sobre os rebanhos? Era o primeiro que via. Ah sim, me lembrei:
- “Sempre que vir um rebanho, lembre-se da Tradição”… - dissera ele. - Obrigada Paulo, obrigada Mestre Jean, obrigada Tradição - repeti emocionada. Pouco depois cheguei a uma pequena e semidestruída fonte que derramava, brincalhona, um jorro de água gelada; havia uma placa com a inscrição: Fuente del Piojo (Fonte do Piolho). Ri deliciada; sou um piolho do Universo, sentindo que agora de mim jorrava sem parar a fonte da felicidade e a visão da magia da vida…
O pequeno pássaro (ou teria sido um anjo?!...) bateu as diminutas asas e senti que desta vez não voltaria; acenei num gesto de adeus simbólico, pois sabia agora que não estava só; que jamais estivera só; que nunca estaria… Tudo era parte do Todo e a solidão era uma grande ilusão…
Soltando a mochila, tirei a roupa e entrei na fonte, refrescando o corpo suado e sentindo os músculos revitalizados pela água que escorria garganta abaixo como o mais delicioso néctar que poderia existir; era o precioso presente da Mãe Terra aos seus filhos amados. Enquanto secava ao sol, leve e relaxada, senti que naquela integração e aceitação das manifestações divinas todo e qualquer julgamento havia se esvaído de mim...
Vi a enorme culpa que vinha carregando inutilmente por toda uma vida: a culpa de ser livre. A culpa de nunca haver conseguido me enquadrar em esquemas ou grupos; o que achava ser uma dificuldade tinha sido, na verdade, a qualidade motora de minhas buscas, responsável por tantas mudanças internas e externas, pelo não conformismo a um sistema de crenças forjado por outros; por ter tido a coragem de buscar minhas próprias experiências e ver “o que” a vida me mostrava de real...
Aceitação era a palavra-chave. Aceitação era Deus! Vi nitidamente a peça que faltava no imenso quebra-cabeça que vinha montando há anos em busca da felicidade… Agora havia descoberto Deus em Sua plenitude de manifestações e eu era uma delas, com ou sem vaidade…
 
Senti que estava exorcizando o meu demônio: - “A culpa de ser um ser livre! A culpa de ser o que sou!...” (Anna Sharp). [Cf. 'A Magia do Caminho Real’, p. 70/77. Editora Rosa dos Tempos. 1993].
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Luz, Amor e Paz! (Campos de Raphael)

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